Comida Boa e Farta – resenha de Adriana Facina

Resenha do livro HB, Heraldo. O cerol fininho da Baixada. Histórias do Cineclube Mate com Angu. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2013. Publicada originalmente na revista de História Recôncavo, da Uniabeu e disponível em: http://www.academia.edu/8676955/Comida_Boa_e_Farta

Um cineclube de nome Mate com Angu imediatamente me lembra a música dos Titãs, Comida. Hit dos anos 1990, a letra dizia assim:

Bebida é água!

Comida é pasto!


Você tem sede de que?


Você tem fome de que?…

A gente não quer só comida


A gente quer comida


Diversão e arte


A gente não quer só comida


A gente quer saída


Para qualquer parte…

A gente não quer só comida


A gente quer bebida


Diversão, balé


A gente não quer só comida


A gente quer a vida


Como a vida quer…

Bebida é água!


Comida é pasto!


Você tem sede de que?


Você tem fome de que?…

A gente não quer só comer


A gente quer comer


E quer fazer amor


A gente não quer só comer


A gente quer prazer


Prá aliviar a dor…

A gente não quer


Só dinheiro


A gente quer dinheiro


E felicidade


A gente não quer


Só dinheiro


A gente quer inteiro


E não pela metade…

Ressignificando a ideia de necessidade, a letra equipara comida, diversão, arte, amor, felicidade. Temos necessidade dos que nos mantem vivos e estar vivo é mais do que ter um corpo biológico funcionando. Estar vivo é criar, é construir identificações, é, enfim significar, fazer a vida ter sentido. E aí, há comidas e comidas. E Mate com Angu é comida, comida boa e farta, como podemos descobrir ao ler o livro de Heraldo HB.

A primeira curiosidade: de onde vem esse nome que desperta curiosidade e riso? Por que dar esse nome a um cineclube de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense, voltado principalmente para curta-metragens e filmes de pouco ou nenhum apelo comercial? O autor explica: Mate com Angu era o apelido desqualificador que a Escola Regional de Meriti possuía nos anos 1920. Era no tempo em que Caxias ainda era Meriti e uma mulher revolucionária, Armanda Álvaro Alberto, criou uma escola voltada para os filhos da classe operária, com métodos e proposta pedagógica de vanguarda. Como foi a primeira escola da América Latina a servir merenda, feita com doações de comerciantes locais, foi apelidada de “mate com angu”. Essa história, esse nome dizem tudo sobre o Cineclube Mate com Angu: vanguarda popular enraizada, comida-diversão-arte. A proposta é essa. Sem pedantismos. Pés no chão e cabeças nos sonhos.

Uma das coisas mais importantes do livro é a relação da história do cineclube, que há mais de uma década faz agitação cultural na Baixada Fluminense e na região metropolitana do Rio de Janeiro, com a história do município de Duque de Caxias. Um dos mais ricos do Brasil, é também campeão de desigualdade. Estigmatizado na mídia desde a ditadura civil-militar, a identificação do município com a violência armada e o extermínio apagou a memória de uma riqueza cultural local. O desafio primeiro dos fundadores do cineclube era, então, mostrar na prática que era possível fazer e usufruir cinema, produzir conhecimento e diversão, reunir pessoas para fazer coisas junto. Sem propostas de salvar ninguém por meio da cultura e nem de fazer projeto social, caminhos pragmáticos para legitimar perante governos e elites as ações culturais para os pobres. O tamanho desse desafio pode ser entrevisto no elogio frequentemente ouvido pelos organizadores do Mate com Angu: “Muito bom! Nem parece que é em Caxias!”. O reforço do estigma no elogio diz tudo: fazer cultura onde falta o básico é coisa para guerrilheiro.

E estratégias e táticas de guerrilha não faltaram. É o carro oficial usado para transportar equipamentos, os dribles em autoridades públicas para conseguir verbas, as gambiarras feitas para fazer funcionar equipamentos precários, a busca por lugares onde exibir os filmes, as parcerias para obter recursos para imprimir material de divulgação, trazer público e os realizadores dos filmes. É a cultura do improviso, da sobrevivência, fundada em solidariedades necessárias e em muita disposição para fazer a vida ter sentido.

Desde o seu início, há mais de dez anos, o Cineclube Mate com Angu priorizou produções audiovisuais locais, de Caxias e da Baixada. Com isso, estimulou a produção de inúmeros filmes, criando outros olhares sobre aquele território. Mas também atraiu a atenção de realizadores de outros lugares que passaram a ansiar a exibição de seus filmes nas sessões do Mate, que sempre contam com uma plateia grande, participativa e animada, querendo debater, discutir e se divertir. Aliás, as festas e o humor são marcas do Mate, retirando do horizonte do cineclubismo qualquer vestígio de pedantismo intelectual e frieza de modos que por vezes assolam os circuitos culturais alternativos. Como disse uma vez Heraldo HB numa palestra na elitizada PUC: “O Mate com Angu é um projeto de inclusão social. A gente quer incluir a classe média na vida real.”

Esse é o tom. Do Mate e do livro. Este se lê como quem está ouvindo histórias de um bom contador de causos, ao redor de uma mesa de boteco. Nessas histórias, aprendemos sobre Caxias, sobre a Baixada Fluminense, sobre cineclubismo no Brasil, sobre produção audiovisual, sobre marketing e estratégias de comunicação, sobre produção cultural e sobre políticas culturais. O livro pode ser lido também como um manual para a realização de sonhos, mesmo em meio a grandes adversidades.

Nas narrativas das aventuras do Mate com Angu, tem arte, comunicação, ativismo e afeto. Diversão vencendo dificuldades, fazendo perdurar no tempo o cineclube e inspirando outras iniciativas “irmãs” na Baixada Fluminense e em todo o Brasil. É a necessidade tornada criatividade e a criatividade transformada em necessidade.

Num contexto em que se espera dos populares a domesticação via projetos culturais que “salvam”, nada mais revolucionário que a “arte pela arte”. Afinal, a gente quer inteiro e não pela metade. Bom apetite!

.

Adriana Facina – Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.