Nessa de quarentena, absorvido na luta para manter o mínimo de sanidade, uma das coisas que tenho feito bastante é mergulhar no mar generoso dos torrents, baixando filmes com os critérios mais variados na mente, entre eles o de conhecer coisas novas e também rever obras de diretores que já me mexeram com o coração algum dia. Um deles que lembrei foi o Ken Loach.
Dia desses num papo, uma amiga fez um comentário curioso sobre o filme novo do cabra, desses comentários que só uma pessoa querida que se preocupa com a gente faz, “não sei se é uma boa assistir nesse momento…”. Acabou que fui assistir depois e entendi completamente o “aviso de gatilho”. É um filme despedaçante mesmo e para quem de repente possa estar em meio a uma bad trip típica desses tempos brochantes, se bobear aumenta a deprê total.
Em “Você Não Estava Aqui” fica chocantemente exposto o processo de “uberização” das relações em geral, uma máscara tosca que encobre o discurso embaladinho do “empreendedor”, da meritocracia, da flexibilização, do sonho de “vencer” na vida. Uma falácia das brabas, enfim. Um trator financeiro que te faz não ter tempo para vida, pra família, para o próximo, para um autocuidado, para o amor… Um processo em que a vida simplesmente não vale nada.
Lembro em 2016 a torcida pelo “Aquarius“, de Kleber Mendonça Filho, no festival de Cannes, a gente torcendo pelo filme mesmo sem ter visto, só pela urgência do desagravo que seria a Palma de Ouro ganha, um expurgo e um merecido prêmio praquela equipe que naquele momento anunciava para o mundo o prenúncio do violento golpe institucional que abriu as porteiras do inferno no Brasil. Mas deu “Eu, Daniel Blake“. E aí quando a gente viu o Loach falando sobre o momento atual do mundo, e depois assistindo ao filme, ficou muito evidente que não só o cara merecia ganhar, mas também a constatação de como o sujeito é desses criadores que estão de fato pensando o seu tempo presente de uma forma visceral e que consegue falar isso numa obra, sem pretensas neutralidades.
“Eu, Daniel Blake” é um raio-x do momento da humanidade onde o ser humano é só um número a ser descartável, refém das corporações e bancos de dados, sem perspectiva de futuro, sem amparo, sem o mínimo de dignidade, mesmo em um país do chamado primeiro mundo. Filmaço. Daí, desses dias de Loach em torrents, fui ver, e alguns rever, filmes antigos do cabra e, putz… Bom demais reconhecer um cara que fala tipo tomando uma cerveja contigo e te dando uns “papo real”.
Ken Loach é desses cineastas de poder interno quase magnético. Com 84 anos completos, o velhinho é tipo jedi oitavo dan grau 33 master blaster da sétima arte. Domina o bagulho. E como o cara tem o poder de trazer uma humanidade rasgante dos atores que dirige… No Meu Nome é Joe você tem realmente vontade de ser vizinho e amigo do Joe, no mínimo ter ele como um conhecido que você admira, mesmo nesse caso não podendo tomar uma cerveja com ele. A emoção de encontrar um punhado de terra embrulhado num lenço, recordação de um avô que combateu o fascismo na Espanha, em “Terra e Liberdade“.
Ou o jovem Damian largando tudo pra ir se juntar ao irmão na luta pela liberdade da Irlanda, em “Ventos da Liberdade“. E o que dizer da Carla em “A Canção de Carla“… Você fica mesmo com uma vontade irresistível de abraçar a Carla e ficar ali naquele cabelão por horas emaranhado, de embarcar com ela pra Nicarágua, uma vontade de dizer pra todo mundo como a América Latina é linda e mágica e poderosa e tesuda e resistente… Uma filmografia baseada no viver a utopia pela liberdade, simples assim.
O mundo pós coronavírus vai remexer estruturas, já se sabe, e como em todo período de mudanças profundas são enormes os riscos de mudança para pior, haja vista o crescimento da onda conservadora pelo mundo. Mas é justamente nesses momentos em que criadores como Ken Loach são absolutamente necessários, no mínimo para nos apontar óbvios que às vezes vamos naturalizando.
Eu amo muitas coisas entre elas o Cinema com sangue na veia, a América Latina, o Brasil profundo, a amizade, a luta pela vida plena, luta que num termina nunca, aqueles que não desistem, quem crê em mudança, quem planta, quem peleja com o facão da arte… Nesse momento, as ideias precisam ser navalhas afiadas e o Cinema é um ótimo amolador de facas. Ken Loach sabe disso.
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Heraldo HB faz parte do Cineclube Mate Com Angu
Animador Cultural, escritor e produtor audiovisual nascido no século passado. Integra o cineclube Mate Com Angu, o Gomeia Galpão Criativo e o Ponto de Cultura Lira de Ouro. Edita a revista Lurdinha.Org