CINEMA POSSÍVEL E O ENCONTRO DO ANALÓGICO COM O DIGITAL

Quando eu prestei vestibular para a UFF em 2009 e vi a opção de curso Cinema, prontamente escolhi outra coisa. Afinal, como eu poderia trabalhar e me sustentar trabalhando com cinema? Como se trabalha com cinema? Hoje, após 14 anos de vivências e aprendizados, eu entendo que naquela época eu não sabia o que era cinema. Eu sabia o que era a indústria imperialista do cinema. Por isso soava tão irreal, tão distante. Saber que a cerimônia do Oscar é apenas mais uma cerimônia, – feita por uma específica academia de artes organizada e que, por acaso (não é tão por acaso assim, eu sei), está situada nos EUA e é a cerimônia de entrega de prêmios mais famosa do cinema – mudou a minha vida para todo o sempre. Eu não parei de assistir um bom e velho blockbuster, nem de acompanhar os últimos grandes lançamentos e sucessos de bilheteria. Eu só descobri que existem muitos tipos de cinema. Muitos mesmo. Talvez a gente nunca consiga dar conta de quantos tipos de cinema existem. É o mundo inteiro filmando.

E o cinema que eu, toda a equipe do “Bel Letras” e todo morador periférico fazemos é o que eu gosto de chamar de “Cinema Possível”, “Cinema-Tentativa”. Podem existir outros nomes: “de guerrilha”, “independente”, etc. Mas a gente faz cinema porque a gente precisa, porque a gente quer, porque a gente sabe que é muito mais que a gente.

As histórias de dificuldades de cada um refletem na nossa produção audiovisual. Mas às vezes a gente consegue um dinheiro graças aos editais, às políticas públicas ( no caso do Bel Letras, foi um edital horrível. Se quiserem detalhes podemos beber uma coca para xingarmos juntos e fazer um brinde à incompetência). No cinema americano dificilmente vemos nas cartelas iniciais “GOVERNO DO ESTADO DA CALIFÓRNIA”, ou algum órgão público que ajudou a financiar aquele filme. Lá é basicamente tudo privado. Aqui no Brasil quem consegue dinheiro grande para cinema, mesmo que seja de iniciativas públicas, ainda é um grupo bem seleto e privilegiado. A gente, que tá fora desse grupo, vai tentando do jeito que dá. E quando tem dinheiro a gente filma remunerando todo mundo, garantindo alimentação e transporte seguro para toda a equipe e tudo mais. É sensacional filmar com dinheiro e sentir que aquilo está sendo bom para todos, que todos estão bem alimentados e conseguirão resolver um pouquinho dos problemas que o capitalismo nos traz.

Tudo isso poderia ser resumido em: A gente faz porque tá dentro da gente. A curiosidade ingênua porém ativa e inquieta. Foi assim que a diretora Josy Antunes e eu, presente como diretor de fotografia e também sedento por aprender sobre o universo dos muros e letras, conduzimos as entrevistas do “Bel Letras”. Não havia uma pauta com perguntas, simplesmente porque não precisava. Não foi nenhum tipo de escolha muito consciente de conceito, dispositivo, linguagem, etc. Por mais de dez anos a Josy guardou as perguntas que fez durante as gravações do curta, ela sabia bem o que queria saber. Mas uma nova percepção surgiu no momento em que decidimos chamar Gustavo Baltar para a equipe, integrando a função de trilha sonora original e design: O que são os pintores de letra senão grandes designers da rua? Grandes publicitários que através dos pincéis, das cores, dos muros escolhidos, chamam a atenção dos pedestres e das pessoas nos transportes? Eles integram o grupo de pessoas que pintam a cidade, junto com grafiteiros e pixadores. Estão todos se comunicando. “As ruas sempre falam em código”, como diz Marcão Baixada na canção “Meu Melhor Rap do Ano”.

O Baltar é designer também, mas ele faz sua arte dentro do computador. Além do encontro da equipe do filme com os pintores, houve um encontro de gerações. E um encontro do analógico com o digital. Do manual com o tecnológico. Assim nascem as dobradinhas nos créditos do filme. Baltar assina o design junto com Sapo, um dos personagens do filme, pois ele criou a logo do projeto ao escrever, com a sua tipografia autoral, o nome do filme. A faixa virou um souvenir raro, desses que, se a especulação do mercado das obras de arte quisesse, custaria milhões. Uma pena que é só se ela quiser. Uma linda recordação cheia de afetividade e significado. A partir das letras que o Sapo desenvolveu, Baltar desdobra as palavras “BEL” e “LETRAS” no alfabeto inteiro. Agora podemos escrever qualquer palavra com a fonte que o Sapo criou. E assim nascem os créditos do filme.

Baltar também divide os créditos da trilha sonora original com Schneider, outro personagem do filme. Em um dado momento da gravação de sua entrevista, ele pega seu violão e começa a cantar diversas canções populares, de Zé Ramalho a Legião Urbana. Baltar evidencia suas raízes no Hip Hop e usa a arte de samplear, de criar um loop com alguns segundos tocados no violão de Schneider e depois acrescenta outros elementos, como a guitarra. O encontro do violão-orgânico, com a guitarra-elétrica. Toda obra de arte é fruto de encontros. E Bel Letras é isso. Um encontro em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Um encontro de gerações. Um encontro de diferentes técnicas artísticas. Muros que viram filme, dentro das possibilidades do cinema possível, a partir do encontro com o digital. Um encontro, e um reconhecimento, de artistas.


Higor Cabral

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