Nossa equipe contava com aproximadamente dez pessoas. A meta seria filmar cinco sequências, durante a realização do Meeting of Favela, encontro de arte urbana, que acontece todo último domingo de novembro, na Vila Operária, em Duque de Caxias. Esta ação conclui a etapa de filmagem do curta “O dia em que Maria teve a brilhante ideia de convidar João para um encontro de favela” (título provisório).
A Kombi saiu do Morro do Pinto às cinco e meia, passando pela Cidade de Deus, Alemão e chegando em Caxias. Iniciamos as filmagens com atraso de aproximadamente duas horas. A primeira sequência, a ser filmada, foi a do grafite. Esta recebeu prioridade em relação à sequência da poesia, pela possibilidade da filmagem acontecer antes de o som do palco principal ser ligado. No planejamento inicial, a sequência do grafite seria filmada com o incômodo deste som. Outro fator considerado foi a pendência no elenco, que ainda estava definindo quem faria o papel do poeta, de seu amigo e da dona do bar.
Camila iniciou a realização do grafite e em alguns minutos este estava pronto para o início da filmagem. Ela explicou à atriz, Thayná, como seriam os movimentos do spray, no ponto de vista da arte de grafitar. Expliquei como seriam os mesmos movimentos no ponto de vista da montagem da sequência. E Mazza explicou, no ponto de vista da fotografia. Após a compreensão destas três visões, o primeiro plano do filme foi realizado. Uma subjetiva da tinta saindo da lata em direção à parede, com movimentos ondulares. Tínhamos o primeiro plano do filme. Os demais planos da sequência seguiram sem maiores preocupações até a conclusão desta sequência.
As duas horas de atraso para o início das filmagens, nos fizeram repensar todo planejamento e eleger a primeira sequência, da chegada de João, como opção atraso. Em outras palavras, descartável. Esta sequência foi criada bem depois do roteiro pronto, apenas para dar ritmo ao início do filme. Seria a última sequência a ser captada e na impossibilidade de realização da mesma, não faria falta alguma. Por outro lado, a aproximação geográfica da segunda sequência, a do grafite, com a escada; onde seria filmada a segunda metade da sequência da chegada, nos levou a tomar a decisão de fazer três os planos finais desta sequência. João subindo as escadas sob o ponto de vista de uma pan, caminhando em direção à câmera e caminhando de costas para câmera.
Esses planos nos tomariam pouquíssimo tempo, já que dispensavam iluminação artificial. Consideramos sábia essa decisão, porque teríamos alguns insertes para montar com a sequência do grafite. E mesmo que não fizéssemos os planos iniciais daquela sequência, conforme a decisão da opção atraso, poderíamos brincar na ilha de edição com a possibilidade de criar uma expectativa da chegada de João.
Concluída esta meia sequência, partimos ao bar para realizar a terceira sequência, da poesia. Pensávamos em fazer essa sequência mais lá no final, por a mesma ser em ambiente coberto e estarmos com previsão de chuva para o fim de tarde. Por outro lado, esta mesma cobertura impedia a entrada de luz natural à tarde e achamos por bem aproveitar essa luz divina ainda pela manhã. Durante análise de campo, chegamos à conclusão que os personagens poetas desta sequência seriam interpretados por eu e Isis. Seria uma decisão difícil, porém necessária. Perderíamos duas pessoas da equipe, de direção e produção, em função do elenco.
Também precisaríamos de um figurante para jogar sinuca. Convidamos Wallace, filho do dono do estabelecimento onde fazíamos a locação. Durante as filmagens, chegou o Heraldo HB, que reforçou nossa equipe. Ele orientou eu e Isis, nas declamações das poesias. Estes planos tomaram muito tempo de produção, já que nós dois não dominávamos o roteiro. Levamos um total de duas horas para concluir esta sequência.
O almoço estava marcado para às doze horas. Mas paramos a filmagem às quatorze. Se considerarmos que já tínhamos duas horas de atraso no início da filmagem, poderíamos concluir que estas correram conforme o previsto. Mesmo com a demora na sequência da poesia, mantivemos o atraso de duas horas, sem acréscimos. E ainda tínhamos feito metade dos planos da sequência da chegada. Pra falar a verdade, parece que fomos rápidos.
Não conseguimos cumprir o intervalo de almoço em uma hora. Toda a equipe se deslocou para o restaurante com equipamentos e ficamos muito tempo esperando a comida ficar pronta. Comemos muito rápido e só estávamos de volta às locações às quinze e trinta. Neste horário, começou a chover. Sabíamos que isso aconteceria. Só não queríamos que antes de fazermos a quarta sequência, da caminhada. Esta é a principal sequência do filme. Seria o momento em que a percepção de João ascende à arte, que estaria acontecendo in loco no Meeting of Favela.
Esta sequência seria a transição entre o momento de choque de João, ao receber as poesias e o momento em que ele demonstra interesse pela arte urbana, através da batalha de rimas, que acontece na quinta, e última, sequência. Nos reunimos na base para refletir a respeito do momento. Teríamos a opção de filmar a sequência da caminhada na chuva e concluirmos o dia de filmagem com a sequência da batalha no palco principal. Outra opção seria aguardar a chuva passar e assumir o aumento no atraso.
Na primeira opção, os atores estariam molhados na sequência da batalha, o que não seria problema, já que caminhariam na chuva antes. Na segunda opção, correríamos o risco de perder a luz e não concluir o filme. Esta opção foi imediatamente descartada. Pensamos ainda uma terceira opção, que seria filmar o que fosse possível dentro da quadra coberta. E de tempos em tempos analisarmos o que tínhamos e atualizar o planejamento.
Enquanto meditávamos a respeito, todas as pessoas da rua correram para se abrigar da chuva na quadra. Inclusive a banda que animava o local. A rua virou um verdadeiro deserto. Em contra partida, a quadra ficou muito badalada. Não haveria mais dúvidas. Filmaríamos as duas sequências faltantes dentro da quadra. O único desafio nesse momento seria o som. O palco principal fica na quadra e o som estava muito, mas muito alto.
Enquanto planejaríamos a sequência da batalha, bem mais complicada, poderíamos ir filmando a sequência da caminhada. Já que está seria documental. A arte urbana que estaria disponível na rua, se transformou no alvoroço que acontecia dentro da quadra. Batalha de B.Boys, grafite, shows, venda de CDs, botons, camisas. Tudo documental. O casal caminhava, observava o entorno e a gente filmava.
Para sequência final, da batalha, tínhamos disponíveis dois microfones lapela e um direcional. Como disse, o som do palco principal estava muito, mas muito alto. Montamos a cena ao lado do palco, aproveitando o público dos shows. O casal de rimadores estaria rimando ali e o casal de protagonistas discutindo ao lado. O roteiro previa o som dos rimadores em primeiro plano, durante a discussão do casal. E a partir de um dado momento, essa configuração se inverteria. As vozes dos rimadores, que antes estariam em primeiro plano, cederiam lugar às vozes dos protagonistas que se levantaria ao passo que a discussão esquentasse.
Pensamos que os três primeiros planos seriam capturados com os rimadores lapelados. Os três últimos com os protagonistas. A sequência correu sem maiores problemas. O som capturado pelo microfone lapela, realmente sobrepôs o som ambiente, que vinha do palco principal. Fizemos uns três ou quatro planos com os rimadores lapelados, depois outros três ou quatro com os protagonistas.
Na última tomada não dei o corta, deixando a discussão rolar até a exaustão. Precisaríamos desse momento “discussão”, já que, de certa maneira, os textos dos diálogos desta sequência eram muito mais da preparação de elenco que do próprio roteiro. Outra questão de elenco foi resolvida na hora. Renato, que estava trabalhando na montagem do set do DJ Negralha, aceitou interpretar o Mestre de Cerimônias.
Após os planos dos rimadores e dos protagonistas concluídos, fizemos um plano do Mestre de Cerimônias em aproximadamente cinco tomadas. Consideramos essa quantidade de tomadas, pequena. Visto que nosso convidado nunca havia visto o roteiro ou mesmo ouvido falar a respeito do filme. Esse fator surpresa contribuiu bastante com o tom híbrido do filme, onde apenas o casal de protagonistas conhecia o roteiro e havia ensaiado o mesmo.
Liberamos o Mestre de Cerimônias para voltar ao set do DJ e continuamos com a filmagem. Restava apenas a ação final. O beijo. Toda discussão já estava pronta. Tínhamos até um beijo gravado na tomada da exaustão, mas com enquadramento duvidoso. Não optamos por assistir o que tínhamos gravado. Decidimos fazer novamente o plano. Desta vez ao invés de toda discussão dos protagonistas, partimos da deixa da atriz para um pequeno solo do ator, que serviria de deixa para o beijo.
Ficou perfeito, mas quando assistimos ambas as tomadas, na câmera, percebemos que a primeira – aquela da exaustão – tinha mais feeling que a segunda. Mesmo pegando o fotógrafo de surpresa, o beijo ficou muito bem enquadrado e se alinhou melhor ao ritmo da discussão. Ponto para o inesperado. Agora resta saber se confirmaremos todas essas impressões na ilha de edição.
.
Cacau Amaral é cineasta [http://www.cacauamaral.com]
Cineasta brasileiro.
Direção em 5X Favela; 1 Ano e 1 Dia; Cineclube Mate com Angu; Sociedade Musical Lira de Ouro; Programa Espelho e Aglomerado.