Você choraria a morte de uma pessoa que durante anos te tratou com total indiferença? Imagine uma morte brutal e violenta, projete isso em uma pessoa que por anos e anos te explorou com o pretexto de te oferecer uma oportunidade. Um patrão por exemplo. Um patrão que usa a força de trabalho de seus empregados ao máximo, os remunera da pior forma possível, dentro e fora da lei, e em que um momento de crise lhe abandona à sua própria sorte. Você choraria a morte de uma pessoa como essa?
A invasão russa na Ucrânia evidenciou, entre muitas outras coisas, a frágil situação de imigrantes africanos na Europa. A fronteira entre Ucrânia e Polônia, uma das principais rotas de fuga do conflito, tornou-se palco de uma situação bizarra. Imigrantes africanos estão sendo impedidos de acessar os trens que deixam o país, sob o lema de “ucranianos primeiro”. Instituições como a EOTO (Each One Teach One) de Berlim, relatam que africanos e outros imigrantes não brancos estão há dias estacionados na fronteira, em condições sanitárias precárias, sem acesso à comida, sem acomodação, em um frio de até menos vinte graus.
Hoje, 10 de março de 2022, mais de dois milhões de ucranianos, a maioria mulheres e crianças, já deixaram o país. Muitos deles sendo recebidos de braços abertos pelos países vizinhos. Só aqui em Berlim chegaram mais de 100 mil ucranianos e o clima na cidade é de total solidariedade. Na rede social para vizinhos nebenan.de existem inúmeras postagens não só relacionadas a doações de objetos, roupas ou comida, mas muitas pessoas oferecem espaço em suas próprias casas para acomodar os refugiados que não param de chegar.
Eu acompanhei, por razões profissionais, bem de perto a chamada crise dos refugiados em 2015, decorrência direta de guerras na Síria e no Afeganistão. Em 2015 a questão era tratada como um problema gigantesco. Imagens de catástrofes naturais, como um Tsunami, foram escolhidas para ilustrar a “invasão” dos refugiados. Os pedidos de asilo eram e seguem até hoje extremamente burocráticos. Muitos não receberam refúgio e foram deportados de volta para regiões de conflito.
Hoje não se fala em crise, o clima é de solidariedade e empatia. Quão difícil será para as pessoas de bem que hoje simpatizam com os ucranianos entender quão racista este continente pode ser?
Para a pessoa afro ou não branca, em momentos de paz ou guerra, é delegado o pior dos lugares. O lugar da indiferença, do explorado, do que pode ser deixado para trás, com fome e frio. Salvem-se os ucranianos que puderem! É óbvio que a guerra, e todas elas, inclusive aquelas que acontecem agora mesmo no Sudão do Sul, na Líbia, ou em Camarões, são uma tragédia e uma prova do fracasso da humanidade. Mas qual grau de empatia deveria ser necessário para me fazer chorar a morte daqueles que não repetidamente provam não se importar de fato com a minha vida?
É claro que nem todo europeu é racista, não se trata aqui de uma generalização. Mas a sociedade é feita de indivíduos, e o racismo é evidente quando se afirma que o problema não é a guerra, mas sim a guerra na Europa. O problema não são as mortes, mas sim as mortes de pessoas brancas. Repito, toda guerra é um absurdo. Mas esta guerra evidencia a situação de precariedade de imigrantes não brancos. Sendo assim, a consciência do lugar que ocupo vivendo aqui me impede de nutrir simpatia por aqueles que escolhem me deixar para trás enquanto tentam salvar suas próprias vidas.
é pesado, eu sei. Mas a pergunta me parece muito pertinente: devo chorar pela morte de um racista?
PS: uma pixação vista aqui na esquina resume muito do que sinto: “Fuck Putin, Fuck OTAN! Stop the war!”.