Marte Um – Filme Família

Todos os filmes são documentos no tempo. Mesmo os piores ou os mais dentro do esquema hegemônico têm signos em sua projeção que dizem muito sobre a época em que foram produzidos. “Marte Um”, do diretor Gabriel Martins, talvez seja o mais relevante e bonito filme sobre os anos Bolsonaro. Esse tempo em que tivemos nossa frágil e imperfeita democracia ameaçada pela extrema direita torpe e fascista. Algo tão bizarro que nos é difícil compreender como uma figura tão caricata e escrota, tão vilão de filme ruim, chegou ao Palácio do Planalto. Só o tempo para nos ajudar a compreender – o tempo e filmes como Marte Um.

Mesmo que Marte Um seja um filme que não aponte seu olhar para Brasília ou para o dito cujo. As câmeras aqui estão apontadas para a intimidade dos Martins, família negra, classe trabalhadora, moradora da periferia de Contagem, cidade da região metropolitana de BH. A ameaça do fascismo, de viver num país que não apresenta perspectivas, está fora da casa dos Martins. Se apresenta num fragmento de TV ali, numa notícia de rádio acolá, e principalmente, nos poderosos silêncios que os personagens emitem.

Marte Um capta, com força, o debate público dos últimos quatro anos, sem desperdiçar uma linha sequer do roteiro com falas panfletárias. O que é um alívio. Se tem algo que é tóxico no Cinema brasileiro, que tem muito em nossa produção, é a linguagem panfletária, o tom professoral, aquela postura pedante de quem acha que é preciso ensinar algo ao povo. Muitos filmes bons, ótimos inclusive, caem nesse vício. Posso dizer que Marte Um nem foge dessa armadilha, não foge porque não passa nem perto.

E para mim este fato se deve ao lugar de fala do diretor Gabriel Martins e da produtora Filmes de Plástico. Ambos são da periferia, falam de lá. Não são realizadores que saíram da classe média para filmar o povão. Eles são povão, e isso faz toda diferença.

O filme tem uma direção muito talentosa, uma fotografia delicada de Leonardo Feliciano, uma arte precisa (e preciosa) de Rimenna Procópio, mas o elenco arrebenta muito, meu Deus. Principalmente Rejane Faria, que interpreta Tércia, a matriarca dos Martins. E Carlos Francisco, que dá corpo ao patriarca, Wellington. Me faltam palavras para descrever o que os dois fazem em cena. Mas vou tentar.

Tércia traz aquela preocupação típica de mãe: o que será dos filhos, da família, o que será do amanhã? Talvez, por isso, a personagem de Rejane Faria seja a que melhor traduz o sentimento de ver o país ser assaltado pela extrema direita. Cada silêncio seu, cada olhar, traduz a profunda preocupação pelo que está por vir. Cada suspiro seu, é um nó na garganta da plateia.

Outro talento é Carlos Francisco; seu personagem é um homem que parece muito com os homens que elegeram Bolsonaro, com a diferença que Wellington larga o orgulho besta de lado e em nome do amor que tem pela família, dá a volta e se reposiciona, se reinventa, isso sem deixar de ser quem ele é. Sem discursos moralistas. É bonito que só acompanhar o desenvolvimento do personagem.

Também vale destacar o trabalho de Cícero Lucas, que faz o protagonista Deivid e Camila Damião, que faz a irmã Eunice. Responsáveis por um dos momentos mais ternos do filme, quando Deivid, diz que não quer ser aquilo que o pai quer que ele seja, que ele quer ir para Marte, povoar o planeta vermelho. É tão bonita a cumplicidade dos dois, que é até difícil de acreditar que eles não são irmãos de fato.

Essa cena é a chave do filme, porque tem ali seu tema, o sonho da juventude de ir mais longe. De não deixar morrer dentro de si a utopia, mesmo diante de uma realidade social que parece impossibilitar qualquer avanço. Na verdade, devemos nos questionar porque essa cena é tão forte, um menino sonhar em ser astronauta não deveria causar espanto, deveria ser banal. Mas em nosso Brasil não é. Apesar de termos dado um importante passo civilizatório no último dia 30 com a eleição de Lula, o Brasil não vai deixar de ser um país injusto e extremamente desigual da noite para o dia. Temos muito trabalho pela frente. Um menino de periferia que queira ser astronauta vai continuar nos afetando, nos desmontando, por um tempo ainda. 

Ao final, depois de tanta preocupação e luta, o que nos fica é a esperança. Sentimento tão gasto pelos filmes família que você vê por aí. Aqui ela sobrevive por conta da autenticidade com que a obra é construída e também, por conta da teimosia com que a família Martins tem de continuar sonhando. Para eles nada parece impossível. Enquanto houver vida, haverá luta, afinal, estamos vivos!

Evoé Cinema brasileiro.

Igor Barradas

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Sobre Igor Barradas

Igor Barradas é cineasta, educador audiovisual e pesquisador. Integra o cineclube Mate Com Angu, o Gomeia Galpão Criativo e a Circular Filmes.
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