Mate Com Angu no Segundo Caderno do O Globo

Invasão bárbara no Segundo Caderno do Globo no domingo dia 07/11/10 🙂

E otimamente acompanhados dos Enraizados e da Cia. do Invísivel. Ó o texto na íntegra aí embaixo. É noise.

Na periferia, a Tropicália dos excluídos

Arte e militância se misturam fora do perímetro da Zona Sul em coletivos de cinema, teatro, música e literatura
Por Karla Monteiro

Fora do perímetro da Zona Sul, arte e militância estão — cada vez mais — se misturando. E dando caldo. A coisa acontece em grupo, apoiada em redes, que botam em contato a periferia do Rio com os subúrbios de grandes cidades do mundo inteiro. Uma, digamos, Tropicália dos excluídos — em nível internacional. A história é assim: a galera se junta e, na parceria, “na firmeza”, faz arte de qualidade. O objetivo nunca é apenas produzir uma obra, mas interferir, mudar comportamentos, falar para pessoas que, de outra maneira, não teriam acesso à cultura. São dezenas de coletivos espalhados pelo estado. Nós fomos conhecer o trabalho de três: Mate com Angu, em Caxias; Enraizados, em Morro Agudo, Nova Iguaçu; e Cia. do Invisível, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio. Em cada um deles, muita história para contar.

No galpão do Mate com Angu, bem no centro de Caxias, o papo é cinema. A turma realiza mostras e produz curtas-metragens, muitos deles premiados em festivais importantes. Do dia 18 ao dia 24 acontece a mostra Angu à Francesa, com a exibição de 12 filmes feitos na periferia de Paris e de dez obras locais.

A galera do Enraizados, com braços em 17 estados, faz música, cinema, artes plásticas, literatura e política. Eles mantêm um trabalho social que atende 600 adolescentes e 120 crianças em Morro do Agudo.

Em dezembro, o grupo lança uma biografia, com a curadoria da professora Heloísa Buarque de Hollanda. Já na Cia. do Invisível a onda é teatro. E uma nova moda: apresentar as peças na sala da casa das pessoas. O anfitrião tem um único compromisso: chamar os vizinhos. No momento, a companhia está circulando pela Zona Oeste com o projeto Café com Machado.

Era lugar-comum dizer que havia mais vida de rua nos subúrbios do que nos bairros de elite — diz o antropólogo Hermano Vianna. — Isso mudou com a violência. Grades agora existem em qualquer lugar.

O surgimento dos coletivos é uma tendência contrária a essa imposição do isolamento e da separação. Todo mundo cria junto, todo mundo quer ficar junto. E isso tem a ver com um entendimento e um uso ousado dos recursos de criação colaborativa no mundo pós-internet, pós-web 2.0, pós-lan houses. Não faz muito tempo, o Mate com Angu convidou o (site colaborativo) Overmundo para escolher alguns vídeos disponíveis no site para uma mostra em Duque de Caxias. Teve festa, DJ legal, eu fui. Nada surpreendente que essa ideia inovadora tenha vindo da Baixada, e não da Zona Sul. A periferia é muito mais voraz diante do novo do que o velho Centro.

Sede de novidade e política

Ex-diretor de teatro, Marcus Vinicius Faustini, autor do “Guia afetivo da periferia”, já fez parte de muitos coletivos do gênero. Para ele, a arte que vem dos subúrbios é mais do que sede de novidade. É essencialmente política.

A cultura de periferia não quer só criar representação. Ela quer interferir de fato. Para o menino de um coletivo, é tão importante estar no palco quanto militar. A separação entre arte e vida não existe. A principal característica é a rede, que se expressa nos blogs, nos saraus, nos encontros internacionais — comenta Faustini.

Vai ter que haver uma ampliação das categorias estéticas da arte. É outra categoria estética que está em jogo. A crítica, a academia, ainda não dá conta de olhar para isso como arte, porque está muito enquadrada. Encaixa as obras oriundas desses movimentos no amador. Não é amador. É superprofissional. Algo que se pega no ar, com sutileza. Uma interpretação do mundo contemporâneo muito sutil. A cultura de periferia é pura arte contemporânea.

Chegamos a Caixas no início da tarde de sexta-feira. Sol a pino, calor de esmorecer. A sede do Mate com Angu ocupa um galpão coberto com telha de amianto, descaradamente improvisado. Em frente, um boteco pé-sujo, com cerveja gelada.

Pouco a pouco, vão chegando alguns integrantes, todos com latinha na mão. Igor Barradas dirigiu o curta “Queimados”, selecionado para o Festival de Brasília. O filme também vai estar na mostra Angu à Francesa. Segundo ele, todas as produções do Mate com Angu são fruto do suor de todos. Ninguém cobra pelos serviços, seja direção de arte ou captação de recursos — no caso, a captação se dá entre amigos e simpatizantes. Não há patrocínios. “Queimados” foi o primeiro filme do Mate com Angu feito em película. Custou R$ 20 mil. Ao todo, a galera tem mais de 30 curtas no currículo.

Meu primeiro filme foi “Progresso Primavera”, sobre o bairro de Caxias onde nasci. No lançamento, a galera se juntou e falou: “Vamos criar um coletivo, organizar nossas mostras.” Isso foi o embrião da ideia, em 2002. O Mate nasceu na onda do digital: fazer filme barato e dar um jeito de mostrar — diz Igor. — Com “Queimados”, eu quis experimentar película. Fiz com o apoio da gente mesmo. E com as minhas economias. Deixei de comprar um carro e fiz um filme.

Heraldo HB é uma espécie de porta-voz da turma. De acordo com ele, o nome Mate com Angu é uma referência a uma escola histórica de Caxias, a primeira a ter horário integral, rádio de estudantes e merenda: mate e angu. Quando o coletivo nasceu — hoje são mais de 20 integrantes —, há oito anos, só organizava mostras, com filmes colhidos por aí. Um ano depois, em 2003, iniciou a produção de curtas. O primeiro filme a fazer sucesso foi “Um ano e um dia”. Ganhou festivais e, em 2008, acabou numa mostra em Paris.

O diretor é Cacau Amaral, um dos diretores de “’5xFavela — Agora por nós mesmos”. Com a ida de “Um ano e um dia” para a França, o grupo começou um “intercâmbio” com coletivos do subúrbio de Paris. O resultado da conversa é a mostra Angu à Francesa.

Vão vir quatro diretores franceses e várias pessoas que trabalham na produção de filmes no subúrbio de Paris. Uma das características do Mate é conseguir lotar os eventos. A mostra vai acontecer no Sesc Caxias — diz Heraldo. — Nós trabalhamos com um público que nem sabe o que é um filme de curta-metragem. A intervenção social é muito clara. Estamos trazendo uma estética para mexer. Quando começamos, não existia nada em Caxias.

Do centro de Caxias seguimos para Morro Agudo, em Nova Iguaçu, onde o desamparo é mais latente, mais na cara.

Os Enraizados espalham-se por um grande terreno, rodeado por pequenas construções, com um pátio interno de terra batida protegido por uma velha mangueira. Por todos os cantos, crianças e adolescentes em oficinas. Tudo o que se ensina ali aplica-se na prática.

Os alunos de design, por exemplo, aprendem a fazer capas de disco, filipetas etc. Os líderes do pedaço são Dudu de Morro Agudo e Luiz Dumontt. Dudu é a voz da galera. Ele conta que a coisa toda surgiu a partir dele.

Em 1999, Dudu comprou uma revista de hip-hop e passou a mandar cartas paras os leitores da seção de correspondências. Mentia: dizia que tinha um grupo no Rio chamado Enraizados. Tirou o nome de uma música. A troca de cartas cresceu tanto que ele se viu na obrigação de transformar a mentira em verdade. Em 2001, reuniu músicas que recebia via e-mail e pelo correio. E lançou muuma pioneira coletânea de rap nacional, com grupos de oito estados. Daí para a frente, a coisa cresceu. Os Enraizados estão em 17 estados, com cerca de 200 “militantes”.

Lançamos três coletâneas de rap e um disco na França com grupos de lá.

Agora estamos começando o processo de lançar artistas solo. Vamos fazendo um artista e, com o dinheiro, investindo em outro. Depois que começamos a ter visibilidade, dou palestras em organizações, faço muitos shows…

Tudo o que é arrecadado vai para o projeto — diz Dudu.
No começo a gente não discutia nada. Só reclamava de tudo: preconceito social, falta de oportunidade… Depois fomos nos engajando. Lançamos discos o tempo inteiro, fazemos filmes… As pessoas vêm para gravar um disco e no final todo mundo estuda, discute… Não praticamos arte pela arte.

Do local para o universal

Em Santa Cruz, a turma da Cia. do Invisível também não. Composta por seis artistas formados pela Escola de Teatro Martins Pena, todos moradores das redondezas, a companhia monta peças que cabem na sala de qualquer vizinho. Agora estão em turnê — ou de porta em porta — com uma adaptação do conto “O caso da vara”. Depois de cada apresentação, tem — literalmente — Café com Machado. A família ganha uma obra do autor. E um professor de literatura abre o debate.

Não moramos longe. Longe de quê? Podemos discutir o nosso próprio universo. Do local para ser universal. Temos tido um resultado muito interessante.

As pessoas ficam fascinadas — diz Alexandre Damascena, diretor da Cia. do Invisível.

O fato de sermos da periferia já nos torna invisíveis, o que pode ser bom: se não sabem quem somos, também não esperam nada da gente. Isso significa que podemos ser o que quisermos, fazer do nosso jeito.

 


Pra compartilhar pelaí

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Translate »
Rolar para cima